Com sua fé racional e metódica, o filósofo francês
inaugurou a modernidade varrendo o entulho no terreno da mente.
Considerado
por muitos o fundador da filosofia moderna, o francês René Descartes foi um dos
mais charmosos heróis e um dos mais atacados vilões na história do pensamento.
Matemático brilhante e cientista profundamente inspirado, ele legou à reflexão
filosófica certo viés mecanicista que ainda não a abandonou de todo – por isso
foi acusado de plantar uma semente de frieza no coração do pensamento
ocidental. Contudo, foi esse amante dos números e das combinações geométricas
quem produziu o sopro de vida mais revolucionário a enfunar as velas da filosofia
desde os tempos de Aristóteles – e não é de espantar que sua jornada
intelectual tenha dado frutos mistos. Paladino da razão, ele impôs a si mesmo
uma missão demasiado formidável: encontrar um método unificado para a
decifração dos múltiplos enigmas do universo, desde as profundezas da física
até as alturas da teologia, passando pelos dramas da vida humana. Em sua busca
impetuosa por conhecimento, Descartes estudou a trajetória dos astros, dissecou
cadáveres, embrenhou-se em selvas algébricas, especulou sobre a natureza divina
e tentou solucionar as misteriosas imbricações do corpo e da alma – aplicando a
tudo a mesma fé racional e metódica.
Pensador de interesses infinitos, Descartes foi também um dos estilistas mais rematados e menos pedantes na literatura filosófica. Suas obras contêm voos narrativos de dar inveja a muitos ficcionistas – em vez de nos empurrar conclusões prontas, o autor dos clássicos Discurso do Método e Meditações Metafísicas preferiu narrar, passo a passo e com translúcida franqueza, os caminhos e descaminhos de suas reflexões. Ler Descartes é pensar junto com ele – e, mesmo quando discordamos de suas conclusões, é impossível não admirar a sinceridade e o esmero de seu relato. Nisso, ele simboliza o inverso daquela figura tão comum nos dias de hoje: a do especialista hermético, que jamais abandona a proteção e o conforto dos jargões. Espécie de romancista do pensamento abstrato, René Descartes quis dirigir-se de forma franca e compreensível a todos os seres dotados de razão e bom senso – e nisso ele triunfou com maestria poucas vezes igualada. Foi, acima de tudo, o filósofo da clareza.
Pensador de interesses infinitos, Descartes foi também um dos estilistas mais rematados e menos pedantes na literatura filosófica. Suas obras contêm voos narrativos de dar inveja a muitos ficcionistas – em vez de nos empurrar conclusões prontas, o autor dos clássicos Discurso do Método e Meditações Metafísicas preferiu narrar, passo a passo e com translúcida franqueza, os caminhos e descaminhos de suas reflexões. Ler Descartes é pensar junto com ele – e, mesmo quando discordamos de suas conclusões, é impossível não admirar a sinceridade e o esmero de seu relato. Nisso, ele simboliza o inverso daquela figura tão comum nos dias de hoje: a do especialista hermético, que jamais abandona a proteção e o conforto dos jargões. Espécie de romancista do pensamento abstrato, René Descartes quis dirigir-se de forma franca e compreensível a todos os seres dotados de razão e bom senso – e nisso ele triunfou com maestria poucas vezes igualada. Foi, acima de tudo, o filósofo da clareza.
DescartesFilósofo, físico e matemático, René Descartes, o pensador que introduziu a dúvida na filosofia, nasceu na França em 1596 e morreu na gélida Estocolmo (Suécia) em 1650.
Cheio de opiniões
Descartes nasceu na região francesa de La Touraine em
1596, no seio de uma família abastada. Sua mãe morreu de tuberculose antes que
o filho completasse 1 ano; o pai era um ocupadíssimo magistrado que passava a
maior parte do ano longe de casa. Pálido, frágil, sempre assolado por tosses e
febres, René teve uma infância solitária e hipocondríaca. Aos 8 anos, foi
estudar como interno no célebre colégio jesuíta de La Flèche – lá, a agudeza de
sua mente logo se tornou tão proverbial quanto sua delicadeza física. Os
professores permitiam que ele ficasse na cama até o meiodia, e o pequeno
Descartes aproveitava as manhãs para devorar livros atrás de livros, bem
acomodado entre travesseiros e lençóis (sem dúvida, um método dos mais eficazes
para aquisição de conhecimento). As tardes eram dedicadas ao esporte típico de
um cavalheiro: a esgrima. Apesar das tribulações respiratórias, René tornou-se
um espadachim de respeito e chegou mesmo a escrever um tratado sobre armas brancas.
O gosto pela solidão, a indolência matinal e a dupla habilidade com palavras e
com floretes foram traços que o acompanhariam pelo resto da vida.
Entre os doutos jesuítas, Descartes desfrutou os rigorosos benefícios de uma educação clássica: leu os gregos e os latinos, encantou-se bem cedo pela poesia e encontrou na matemática a paixão de sua vida. Ainda muito jovem, contudo, seu entusiasmo erudito deu lugar a um crescente escândalo intelectual. Transitando pelas obras dos grandes filósofos de diversas épocas, Descartes não encontrou soluções definitivas para os enigmas da alma e do universo, mas uma infindável e encarniçada batalha de opiniões: Aristóteles quase sempre discordava de Platão; ambos eram desprezados pelos céticos, que por sua vez caíam na zombaria dos cínicos; e os batalhões de escolásticos medievais – todos igualmente sábios e pios – sequer concordavam em qual seria a melhor forma de provar a existência de Deus... Anos mais tarde ele escreveria em um de seus trechos autobiográficos: “Considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens excelsos, havia sobre uma única e mesma matéria, eu reputava quase como falso tudo quanto era apenas verossímil... Pois nada se poderia imaginar de tão estranho e de tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito”.
Exasperado com tamanha algazarra, Descartes decidiu abandonar as querelas eruditas e buscar iluminação no “grande livro do mundo”. Em 1618, viajou aos Países Baixos e alistou-se no exército do príncipe de Orange, que combatia uma invasão espanhola (Descartes, que era católico sincero, combateu ao lado dos protestantes – mais uma interessante esquisitice na vida desse andarilho excêntrico). Mais tarde, serviu nas tropas do duque Maximiliano da Bavária, participando nos primeiros embates da Guerra dos Trinta Anos. Nessa época, a filosofia ainda era para ele mais uma inquietação que um ofício. Até que um dia, aos 23 anos, em meio a andanças militares, Descartes teve a revelação que mudou os rumos de sua vida.
No inverno de 1619, as tropas do duque Maximiliano da Baviera estavam estacionadas na aldeia de Ulm, no sul da Alemanha. A neve tombava com abundância e ventos gélidos varriam o lugarejo. O exército inimigo estava bem longe e os soldados não tinham muito que fazer.
Para escapar ao frio, Descartes
passava a maior parte do tempo enfurnado em um quarto aquecido, aproveitando o
ócio para meditar. Como sempre, atormentava- o a velha questão: por que haveria
tanta discórdia entre os sábios? Qual seria o método correto para decifrar o
universo? No dia 10 de novembro, a resposta subitamente surgiu, na forma de uma
metáfora arquitetônica. Descartes imaginou, primeiramente, uma cidade
construída ao sabor das gerações humanas, com prédios acumulando-se ao léu. Em
seguida, pensou em uma cidade perfeitamente planejada por um único arquiteto,
com ruas alinhadas em traçado impecável. Por fim, concluiu: “Não há tanta
perfeição nas obras compostas pela mão de diversos mestres, como naquelas em
que um só trabalhou. Assim, os edifícios construídos por um só arquiteto são
mais belos que aqueles que muitos tentaram reformar... E parece-me que as
ideias que avolumaram pouco a pouco, compostas pelas opiniões de muitas
pessoas, não se acham tão próximas da verdade quanto o simples raciocínio de um
homem de bom senso”.
Autonomia
mental
Ou seja: na busca pela verdade,
as ponderações de um único indivíduo podem valer mais que todo o peso das
tradições acumuladas. O que Descartes descobriu no aconchego da estufa,
enquanto a neve caía lá fora, foi o valor absoluto da autonomia intelectual. Para
pensar corretamente, é preciso antes abolir todos os privilégios e toda a
autoridade dos mestres; é preciso colocar em cheque todos os pressupostos,
todas as filiações, todos os medos, e valerse apenas daquilo que é comum à
humanidade inteira: a razão.
O dom de distinguir o falso do verdadeiro existe em todos os homens, argumenta Descartes – o problema é que a maioria deles utiliza esse instrumento de forma rasteira, contentando-se com verdades parciais ou incompletas, que foram herdadas e não conquistadas. Antes de construir seu próprio edifício filosófico, Descartes decidiu varrer o entulho no terreno da mente – e só poderia fazer isso atacando impiedosamente os alicerces de tudo aquilo em que acreditava. Para chegar à mínima das certezas, era preciso mergulhar de cabeça no oceano da dúvida. E eis aí um dos aparentes paradoxos que fazem de Descartes um dos personagens inesquecíveis na saga do pensamento mundial. Racionalista fervoroso, sedento de verdades absolutas, o eclético espadachim de La Touraine duelou a vida inteira contra a incerteza – mas acabou concluindo que só se derrota esse portentoso adversário com as armas que ele próprio nos fornece. Duvidar metodicamente de tudo, até que a mente depare com algum princípio inquestionável – essa é a essência da “dúvida cartesiana”, cerne do método racional, que o filósofo-matemático tratou de aplicar a todas as equações do universo.
Descartes descobriu que, para pensar corretamente, é preciso abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres e valer-se daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão
O primeiro alvo da dúvida cartesiana são nossas certezas mais imediatas – aquelas fornecidas pelos sentidos. Imerso em reflexão no calor da estufa bávara, Descartes se pergunta: será mesmo verdade que estou aqui, num quarto aquecido, com a neve a tombar copiosamente lá fora? Certamente, é isso que os sentidos afirmam – contudo, quando sonhamos, também acreditamos na realidade do sonho, e só ao acordar descobrimos que tudo foi ilusão... Para ilustrar o escopo radical de sua dúvida, Descartes elabora uma hipótese com delicioso sabor fantástico: imaginemos que o mundo seja governado por um espírito maligno; imaginemos que essa divindade embusteira tenha criado nossa mente com o único intuito de nos enganar; nesse caso, como poderíamos ter certeza quanto ao testemunho de nossos sentidos, ou mesmo quanto às verdades aparentemente óbvias da matemática? “Ora, quem me poderá assegurar que esse deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas?”, escreve o pensador nas Meditações Metafísicas. “E pode ocorrer mesmo que esse deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado”. Ou seja: tudo o que vemos, ouvimos, pensamos e calculamos pode não passar de uma fraude cósmica, e o conhecimento humano talvez seja apenas uma magnífica tirada de humor diabólico.
E é
precisamente nesse ponto, quando a consistência do conhecimento está prestes a
se dissolver em sonho ou em pesadelo, que Descartes efetua sua estocada
magistral: nem mesmo o mais poderoso dos demônios, nem mesmo o mais astuto dos
deuses poderia me enganar e me iludir se eu não existisse. Ainda que eu duvide
de tudo, não posso duvidar de minha própria dúvida e, por conseguinte, de meu
próprio pensamento. Da dúvida extrema, Descartes faz emergir sua primeira
certeza, cunhada na frase mais famosa da filosofia: “Penso, logo existo”. O
pensamento, e não a matéria, é a evidência de que existimos – sobre essa
verdade dura como pedra, arduamente resgatada no naufrágio das falsas certezas,
Descartes ergue o monumento reformado de sua filosofia.
Após o período passado no exército, Descartes dedicou o resto da vida à reflexão. Exilou-se na Holanda, onde viveu totalmente sozinho, lendo, pensando, fazendo experimentos dos mais variados e relatando por escrito suas aventuras mentais. Por mais que buscasse a solidão, seus livros correram a Europa atraindo tanto discípulos quanto detratores – e o grande misantropo acabou vitimado por sua própria fama. Em 1649, a rainha Cristina da Dinamarca – que tinha suas veleidades intelectuais, como tantos monarcas da época – resolveu contratar Descartes como instrutor pessoal em assuntos filosóficos. Em uma carta, o pensador recusou educadamente o convite. Cristina insistiu, levemente ofendida. Com medo de incorrer na ira de uma soberana, Descartes acabou cedendo. Cristina exigiu três aulas por semana – todas às 5 da manhã. Por alguns meses, Descartes foi obrigado a acordar de madrugada, no inclemente inverno escandinavo – verdadeiro suplício para um dorminhoco hipocondríaco. Por causa dos caprichos de sua real pupila, o autor das Meditações Metafísicas foi fatalmente derrubado por uma pneumonia em 11 de fevereiro de 1650.
Mais que um método, mais que uma doutrina, ele nos deixou um símbolo. Seu intelecto ao mesmo tempo sereno e atribulado, oscilante entre o sonho e a realidade, sempre em busca de um inatingível graal filosófico, serviria nos séculos seguintes como um farol hipnótico para as mentes inquietas – e como eterno convite ou eterno desafio à coragem de pensar.
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