“Amigo da verdade”, o pensador grego deixou uma obra incompleta que é uma das grandes maravilhas da humanidade
Seguidor
e adversário de Platão e neto intelectual de Sócrates, Aristóteles (384-322
a.C.) foi o derradeiro luminar na era de ouro da filosofia grega: com ele,
completou-se a tríade de pensadores antigos que mais infl uenciaram a história
das ideias. Último rebento do período clássico, ele foi não apenas o pai da
escolástica medieval, como também o grande pioneiro e o grande vilão da ciência
moderna. Homem enciclopédico, ele tratou de quase todos os assuntos imagináveis
entre a terra e o céu – e, por isso mesmo, legou fabulosos absurdos científicos
(como a ideia de que a Terra é o centro do universo). Contudo, ele cometeu seus
tropeços em uma época em que não havia telescópios, microscópios ou
termômetros: é fácil (e cômodo) acusar os sábios do passado de ingenuidade ou
estupidez, agora que temos em mãos os recursos acumulados por séculos de
tentativas e erros. Por sinal, os cientistas modernos só desbastaram as arestas
aristotélicas usando as armas que o próprio Aristóteles laboriosamente afiou:
junto às falhas inevitáveis, ele nos legou raciocínios fulgurantes e métodos
primorosos, que até hoje integram o mais fino arsenal do pensamento no
Ocidente. E isso sem falar na filosofia islâmica, fortemente infl uenciada pela
“espada de Aristóteles” – honroso apelido dado pelos antigos persas, rivais
políticos dos gregos, ao legado de seu mais admirável inimigo.
Aristóteles Professor de Alexandre, o Grande, e considerado o “pai” da lógica, o filósofo grego atravessou os séculos graças a trabalhos rigorosos e inspiradores. De saber enciclopédico, Aristóteles especulou sobre praticamente todos os campos do conhecimento humano.
Aristóteles Professor de Alexandre, o Grande, e considerado o “pai” da lógica, o filósofo grego atravessou os séculos graças a trabalhos rigorosos e inspiradores. De saber enciclopédico, Aristóteles especulou sobre praticamente todos os campos do conhecimento humano.
Modelo do erudito que une paixão e rigor, moderação e ímpeto, capaz de dedicar energias titânicas à serena análise do mundo, Aristóteles deixou uma obra incompleta e imperfeita que é uma das grandes maravilhas da inteligência humana. Considerado pela cristandade medieval como o pagão mais genial da Antiguidade, ele ganhou séculos após sua morte um cognome de sucinta reverência: Ille Philosophus, ou, simplesmente, “O” Filósofo. Para o bem ou para o mal, é nas pegadas desse gigante que andamos e meditamos há mais de dois milênios.
Discípulo e mestre
Embora
tenha ganhado fama em Atenas, Ille Philosophus nasceu na cidade de Estagira, na
região da Calcídica, dominada pela vizinha Macedônia. Desde criança, teve sede
de conhecimento: praticamente todos os assuntos o interessavam, da biologia à
literatura. Aos 18 anos, ele realizou o sonho da maioria dos jovens
intelectualmente ambiciosos na época: foi estudar em Atenas, metrópole cultural
da Grécia. Ingressou na Academia, escola fundada e chefi ada por Platão. Ao
longo de 20 anos, Aristóteles foi o discípulo brilhante de um mestre
incomparável. Mas havia meio século de diferença entre eles – além disso, ambos
eram gênios, e isso signifi ca que mais cedo ou mais tarde acabariam brigando.
Certa vez, Aristóteles alfi netou cortesmente o mestre em uma blague registrada
pelos cronistas: “Platão é meu amigo, mas sou mais amigo da verdade”. O velho
Platão replicou em espécie àquela petulância juvenil: “Aristóteles é como um
potro selvagem, que escoiceia a própria mãe depois de lhe ter bebido todo o
leite”.
Após a morte
de seu tutor e rival, em 347 a.C., Aristóteles deixou Atenas e passou alguns
anos vivendo como pensador itinerante pela costa do Mediterrâneo. Foi à
Macedônia, a convite do então monarca Felipe II, que o encarregou de uma missão
formidável: educar o rebelde e fogoso príncipe Alexandre. Assim, o discípulo do
maior fi - lósofo da época tornou-se mestre do futuro conquistador do mundo
conhecido. Aos 13 anos, Alexandre já era dado a bebedeiras homéricas e
olímpicos devaneios de grandeza marcial. Nem mesmo os dotes professorais de
Aristóteles puderam amansar aquele espírito nascido para o som e a fúria das
batalhas. Aos 15 anos, Alexandre subiu ao trono, deixou de lado seus superfi
ciais estudos de fi losofi a e saiu pelo mundo a cometer as proezas e barbaridades
que lhe renderam o apelido de “O Grande”. Ao que tudo indica, no entanto,
manteve uma afeição vagamente fi lial pelo antigo e frustrado professor:
durante suas campanhas intermináveis, costumava enviar-lhe, das terras
conquistadas, os mais fabulosos espécimes de fl ora e de fauna – e, com essa
ajuda do ex-aluno, Aristóteles montaria o primeiro jardim zoológico do mundo.
Pensador universal
Pensador universal
O
filósofo retornou a Atenas em 334 a.C. e fundou uma nova escola, o Liceu, para
rivalizar com a Academia platônica. Sua reputação de brilhantismo atraiu
multidões de alunos de todas as partes da Grécia. As aulas eram dadas ao ar
livre, em meio a passeios por alamedas de árvores – por isso, os seguidores de
Aristóteles ganharam o nome de “peripatéticos” (aqueles que andam, em grego).
Nesse período, Aristóteles produziu uma obra de proporções mitológicas.
Historiadores modernos lhe atribuem algumas centenas de livros, embora anedotas
antigas falem em mais de mil volumes; o certo é que, de seu trabalho hercúleo,
apenas uma pequena parcela sobreviveu. Minúsculo resquício dessa biblioteca
lendária, a coleção conhecida como Corpus Aristotelicum é assim mesmo uma vasta
enciclopédia universal: são 47 livros que tratam de assuntos tão variados
quanto a meteorologia, a mecânica dos astros, a fisiologia animal, os meandros
da política e da ética, as glórias e os enigmas da poesia. Mas esse inestimável
compêndio do saber compõe-se apenas de anotações sumárias e sem retoques, que
Aristóteles fazia às pressas para suas lições – e que mais tarde foram
compiladas pelos discípulos peri-patéticos. Os livros que o filósofo publicou
em vida – escritos com esmerada retórica – perderam-se após a queda do Império
Romano, no século 5. Os extraviados trabalhos de Aristóteles são um dos grandes
tesouros invisíveis da literatura mundial – por injustiça poética, tudo o que
conhecemos são os rabiscos de sua genialidade.
Aristóteles
levou a cabo sua epopeia do conhecimento em meio a torvelinhos políticos.
Atenas fora conquistada pelos macedônios em 333 a.C. – e, embora adorado por
seus alunos, o antigo professor de Alexandre era detestado pelos patriotas
atenienses, que o viam como o apaniguado de um déspota. Após a súbita morte do
conquistador, em 323 a.C., o império macedônico ruiu e seus aliados passaram a
ser perseguidos na Grécia. Como ocorrera com Sócrates décadas antes,
Aristóteles foi ameaçado com a prisão e a pena de morte. “Não darei aos
atenienses outra chance de pecar contra a filosofia”, disse, antes de fugir
para a ilha de Cálcis – onde morreu um ano depois, doente, solitário e exilado.
A
ferramenta lógica
Aristóteles
talvez tenha sido o mais eclético dos pensadores, mas há um denominador comum
que cimenta suas refl exões: antes de tudo, ele foi o pai da lógica, a arte ou
a técnica do pensamento metódico e disciplinado. Isso não signifi ca que os fi
lósofos anteriores fossem ilógicos; mas Aristóteles foi o primeiro autor a
elaborar um sistema rigoroso de critérios para o raciocínio. A função da lógica
é domar a louca energia do pensamento – sem diminuí-la. Não é um fim, mas um
meio: um instrumento preliminar para a refl exão sobre a realidade. Por isso,
as anotações que Aristóteles compôs sobre o assunto foram reunidas com o nome
de Organon – em grego, “a Ferramenta”.
Parte árdua e essencial do Corpus Aristotelicum, o Organon é uma leitura de grandes desafi os e de imensuráveis recompensas – com sua luz difícil e surpreendente, a Ferramenta aristotélica ainda hoje tem a capacidade de aclarar e azeitar as engrenagens da mente humana. Mais que um manual de etiquetas do pensamento, é um ensaio sobre os possíveis acertos e eternos enganos na construção do conhecimento. Para Aristóteles, o ato de conhecer começa pelos sentidos – e nisso ele diferia de Platão, que via na inconstância das percepções uma dança de enganosos fantasmas. “Para cada sentido que perdêssemos”, escreveu Aristóteles, “haveria também uma ciência irremediavelmente extraviada.” Vendo, ouvindo, sentindo, gravamos uma série de impressões sobre a infi nidade de coisas e seres que formam o universo – é o arquivo da experiência, formado pela memória e avivado pela imaginação. Mentalmente, computamos o que os indivíduos têm em comum e no que diferem, formando sobre eles conceitos gerais. Essa acrobacia do múltiplo ao inteligível, do particular ao universal, é o que Aristóteles chama de indução. Um exemplo de conhecimento indutivo: nossa experiência sugere que todas as pessoas que conhecemos (ou das quais ouvimos falar) nascem, envelhecem e um dia morrem; disso induzimos o princípio de que “todos os humanos são mortais”.
É claro que, em qualquer indução, há uma parcela de risco: ninguém pode conhecer diretamente o destino de todos os homens e mulheres, do passado remoto ao vertiginoso futuro. A indução, portanto, não gera certezas, mas axiomas – princípios aceitos pelo senso comum, embora indemonstráveis na prática.
Limites do conhecimento
Parte árdua e essencial do Corpus Aristotelicum, o Organon é uma leitura de grandes desafi os e de imensuráveis recompensas – com sua luz difícil e surpreendente, a Ferramenta aristotélica ainda hoje tem a capacidade de aclarar e azeitar as engrenagens da mente humana. Mais que um manual de etiquetas do pensamento, é um ensaio sobre os possíveis acertos e eternos enganos na construção do conhecimento. Para Aristóteles, o ato de conhecer começa pelos sentidos – e nisso ele diferia de Platão, que via na inconstância das percepções uma dança de enganosos fantasmas. “Para cada sentido que perdêssemos”, escreveu Aristóteles, “haveria também uma ciência irremediavelmente extraviada.” Vendo, ouvindo, sentindo, gravamos uma série de impressões sobre a infi nidade de coisas e seres que formam o universo – é o arquivo da experiência, formado pela memória e avivado pela imaginação. Mentalmente, computamos o que os indivíduos têm em comum e no que diferem, formando sobre eles conceitos gerais. Essa acrobacia do múltiplo ao inteligível, do particular ao universal, é o que Aristóteles chama de indução. Um exemplo de conhecimento indutivo: nossa experiência sugere que todas as pessoas que conhecemos (ou das quais ouvimos falar) nascem, envelhecem e um dia morrem; disso induzimos o princípio de que “todos os humanos são mortais”.
É claro que, em qualquer indução, há uma parcela de risco: ninguém pode conhecer diretamente o destino de todos os homens e mulheres, do passado remoto ao vertiginoso futuro. A indução, portanto, não gera certezas, mas axiomas – princípios aceitos pelo senso comum, embora indemonstráveis na prática.
Limites do conhecimento
Os
axiomas são o ponto de partida para o segundo tipo de raciocínio na lógica
aristotélica: a dedução ou silogismo, que faz o caminho inverso à indução,
estabelecendo fatos particulares a partir de verdades supostamente universais.
O silogismo clássico é formado por duas afi rmativas iniciais – as premissas –
e uma conclusão. Premissas verdadeiras necessariamente produzem uma conclusão
válida. O exemplo dado por Aristóteles e repetido nos manuais de lógica ao
longo de séculos é o seguinte: “Todos os homens são mortais; Sócrates é um
homem; logo, Sócrates é mortal”. O silogismo é como uma máquina de raciocínios
coerentes – mas, se partir de premissas falsas, produzirá conclusões
coerentemente mentirosas. Considere a seguinte dedução: “Todos os homens são
anfíbios; Sócrates é um homem; logo, quando menino, Sócrates tinha brânquias e
vivia debaixo d’água”. A conclusão é absurda porque uma das premissas também o
é: o mecanismo lógico, no entanto, permanece intacto. Daí o alerta lançado por
Aristóteles contra o perigo dos sofismas – argumentos que distorcem a lógica
para criar um verniz de razão.
Ao
destrinchar essas engrenagens, Aristóteles plantou a semente do pensamento
científi co – mas também deixou (talvez sem perceber) um implícito grão de
insegurança no coração de todo conhecimento humano. Como podemos ter certeza
absoluta de que nossos axiomas estão corretos, de que nosso bom senso não é
mera especulação e de que nossos sentidos nos revelam o real? Visão, audição,
tato, paladar e olfato formam uma redoma deliciosa ou terrível da qual não
podemos escapar: e aqui dentro nosso intelecto tem de se haver como puder. Essa
ponta solta seria puxada no século 17 pelo filósofo irlandês George Berkeley –
para quem os sentidos são ilusões, e a realidade, uma fantasia da mente. A saga
da lógica aristotélica alimentou não apenas a fé racional da ciência, mas
também os extremos lúdicos do ceticismo – para o qual tudo o que sabemos e
pensamos talvez não passe de um fascinante sofisma.
Além desse insolúvel duelo entre o conhecimento
e a incerteza, Aristóteles deixou um legado moral ao afi rmar a dignidade da
vida contemplativa. Para ele, o intelecto e o gosto estético são os maiores
dons humanos – e nossa felicidade possível está na fruição desinteressada
dessas faculdades: “o funcionamento da inteligência é um fi m em si mesmo, e em
si mesmo encontra o prazer que o faz funcionar mais”. Em meio ao caos do mundo,
o sábio aristotélico sempre encontrará refúgio no cálido império da refl exão.
Alexandre, caçador de glórias e homem de ação por excelência, ignorou magnifi
camente os preceitos de seu professor, que assim defi ne o ideal de conduta
humana na obra Ética a Nicômaco: “O sábio tem modos serenos; sua voz é grave;
sua ação é comedida. Suporta os acidentes da vida com dignidade e graça,
tirando o máximo proveito das circunstâncias. Ele é o melhor amigo de si mesmo
e se delicia com a privacidade, ao passo que o homem sem virtudes é inimigo de
si próprio e teme, acima de tudo, a solidão”.
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