O enorme apetite filosófico de Platão que marcaria
para sempre nossa forma de enxergar o mundo.
“Toda a filosofia ocidental é uma
nota de rodapé à obra de Platão.” A célebre frase, cunhada pelo matemático
britânico Alfred North Whitehead, é certamente uma hipérbole, mas isso não
significa que seja absolutamente falsa. Afinal de contas, a própria verdade
muitas vezes é assim, hiperbólica – e não há dúvida de que poucos filósofos
tiveram tanta influência sobre o pensamento ocidental quanto Platão. A grandeza
de suas ideias escapa ao domínio da filosofia: ele foi um dos poucos pensadores
que moldaram civilizações com a força póstuma de seu gênio. Após o fim do mundo
antigo, as doutrinas platônicas entraram na corrente sanguínea do cristianismo,
repercutiram no judaísmo e no Islã, geraram inúmeros seguidores e detratores e,
de uma forma ou de outra, ainda marcam profundamente a maneira como encaramos o
mundo.
Discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, Platão é o elo central no grande triunvirato do pensamento grego – o eixo que articula um dos períodos mais intensos e produtivos na história da mente humana. É graças às obras de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates; e foi com base nas teorias platônicas (e muitas vezes para contrariá-las ou corrigi-las) que Aristóteles elaborou grande parte de sua filosofia. Sem Platão, é possível que conhecêssemos Sócrates apenas como um personagem curioso e obscuro – e talvez a grande mente de Aristóteles tivesse se ocupado apenas com as ciências naturais, em vez de produzir o eclético legado que pautou os rumos do Ocidente por milênios. Aristóteles foi o filósofo do bom senso, da moderação e do rigor metódico; Platão foi o pensador do sublime, meio poeta e meio vate, autor de uma obra suspensa entre a ciência e a religião, entre o intelecto e a epifania. Por isso mesmo, a filosofia platônica acabou desacreditada – e às vezes até ridicularizada – ao longo dos últimos 100 anos. Aristóteles, com seu intelecto sisudamente ponderado, parece-nos mais lúcido e confiável. Mas é a obra de Platão, com seu ritmo ora poético, ora dramático e narrativo, que continua enfeitiçando leitores século após século. No eterno duelo entre Platão e Aristóteles, concorda-se facilmente com as razões do discípulo – contudo, é mais fácil é encantar-se com os voos oníricos do mestre.
Um aristocrata do espírito
Platão nasceu em 427 a.C. em uma família de aristocratas. Quando adolescente, pouco se interessava pelos assuntos do espírito. Forte e vigoroso, ele dedicou seus verdes anos ao atletismo e chegou a vencer campeonatos de luta. Também sonhava com glórias militares, como convinha a um membro da nobreza guerreira. A propósito: o verdadeiro nome do filósofo era Arístocles. O apelido “Platão”, que em grego significa algo como “Grandalhão”, era uma referência a seus largos ombros de atleta. É possível que Arístocles tivesse passado a vida a ganhar medalhas nas arenas, se não fosse pela picada do mosquito metafísico que, naquela época, andava zumbindo por Atenas. Com cerca de 16 anos, o belo e belicoso Arístocles deparou, nas ruas da cidade, com um sujeito pobre e feio, esfarrapado como um mendigo, mas dono de uma sabedoria hipnótica. Sempre cercado de ávidos ouvintes, aquela espécie de eremita tagarela – que respondia pelo nome de Sócrates – entregava-se diariamente a debates públicos, questionando seus interlocutores sobre o real significado de palavras aparentemente comuns – como Amor, Justiça, Verdade. O objetivo declarado de Sócrates era mostrar a ignorância essencial de todos os homens – espezinhando-os com perguntas irônicas e insistentes. Daí o apelido que dava a si mesmo: o mosquito de Atenas. Assistindo àquele plebeu sujo e mal vestido desconcertar a cidade mais poderosa da Grécia, o elegante e empertigado Arístocles concluiu que havia uma virtude maior que o sangue azul e a excelência física. O mosquito instilara fatalmente seu veneno: o Grandalhão decidiu virar filósofo.
Durante os 12 anos seguintes, Platão foi o discípulo mais fervoroso de Sócrates – até que, em 399 a.C., o petulante mosquito ateniense foi acusado de ofender os deuses gregos e condenado à morte por envenenamento. Amargurado com a execução do mestre, Platão partiu em uma viagem de 12 anos pelo mundo. Perambulou pela Grécia e pela atual Turquia, visitou o Egito e a Itália; talvez tenha andado pela Judeia e pela Babilônia, e há quem diga que chegou a molhar os pés nas águas do Ganges. Bebeu na fonte de diversas culturas, amadureceu entre gentes e costumes estranhos e retornou a Atenas aos 40 anos de idade, decidido a continuar a missão filosófica de seu professor. Para isso, fundou a Academia, uma escola gratuita de filosofia e matemática, considerada por muitos como a primeira universidade da história. Até sua morte, em 347 a.C., ele viveu debatendo com seus discípulos e compondo suas obras – os Diálogos, textos em que as mais variadas questões filosóficas são apresentadas na forma de debates entre personagens famosos da antiga Atenas. Lê-los não é apenas adentrar tópicos atemporais, mas também mergulhar no testemunho minucioso e imaginativo de um dos períodos mais extraordinários do intelecto humano; é andar pelas ruas de Atenas, trocar ideias e partilhar o vinho dos simpósios com Sócrates e Alcibíades, Xenofonte e Zenão de Eleia. Ótimas companhias, legadas a nós na prosa poética de um dos grandes autores do Ocidente.
Uma
grande teoria
E aqueles
antigos atenienses conversavam sobre tudo: nos 36 Diálogos que nos deixou,
Platão aborda um feixe tão amplo de assuntos que, 23 séculos depois, Emerson
exclamaria: “Platão é a filosofia, e a filosofia é Platão”. Com efeito, a
semente de quase tudo o que viria depois está lá: os labirintos do corpo e da
alma, da linguagem e da memória; a busca de utopias políticas e sociais; o
questionamento sobre o real significado de nossa passagem por este mundo, ao
mesmo tempo tão encantador e imperfeito. Todos esses temas se entrelaçam na
grande questão metafísica que, lançada por Platão em seus diálogos tardios,
haveria de dominar a filosofia pelos séculos vindouros: a “doutrina das
Ideias”.
Essa grande teoria platônica é uma espécie de síntese magistral do pensamento antigo – e, para compreendê-la, vale a pena deslindar as raízes que lhe deram forma e as perguntas que tentou responder. Sócrates, como já vimos, expôs o grão de ignorância que está no centro de toda ciência humana. Outros pensadores daquele período, como Crátilo, foram ainda mais longe: afirmavam que o conhecimento da realidade é impossível, pois vivemos em um universo instável, onde tudo se transforma e nada se fixa. Uma árvore é apenas um estágio entre a semente e a madeira morta; qualquer ser humano é uma etapa entre o feto e o cadáver... Como podemos afirmar qualquer coisa sobre um determinado objeto, se a constante mudança do universo é mais rápida que nossa mente? Eis a charada que a doutrina platônica tenta resolver: o mundo revelado pelos sentidos parece inapreensível, mas precisamos de um fundamento sólido, eterno e universal, para erigirmos o conhecimento seguro (em grego, epistême).
Para encontrar um ponto fixo no aparente pantanal cósmico, Platão bifurcou a realidade. O mundo que vemos, sentimos e ouvimos – argumenta ele – não é plenamente real. Todas as coisas que conhecemos por meio dos sentidos – como nossos corpos, ou esta mesa, ou aquela árvore – são cópias da “verdadeira realidade”, que é incorpórea, imutável e eterna: as Ideias ou Formas. Criadas por alguma divindade misteriosa, inteligente e anônima, as Ideias existem fora do plano físico e, portanto, não podem ser apreendidas por nossos olhos e ouvidos – mas apenas compreendidas pelo intelecto. De um lado, portanto, há o mundo sensível – que é efêmero, enganoso e impermeável ao conhecimento. Do outro lado, há o mundo inteligível – cuja contemplação é a chave da verdadeira sabedoria.
Mas o que são essas Formas transcendentais, nos quais o nosso mundo se espelha foscamente? Esse perturbador museu de seres perfeitos e algo assustadores, dos quais somos reflexos empobrecidos, pode ser mais bem compreendido do ponto de vista da linguagem. Por exemplo: aplicamos a palavra “gato” a inúmeros seres que, embora parecidos, não são iguais. Logo, a palavra não pode referir-se a nenhum dos gatos individuais, tampouco à soma de todos – mas a um tipo de “felinidade” universal, que permanece sempre inalterado, enquanto os infinitos gatinhos do mundo sensível nascem, crescem, miam e morrem. Para Platão, o significado real de cada palavra não corresponde a convenções humanas, mas aos modelos criados ou imaginados por Deus. Os seres humanos são inúmeros, radicalmente diferentes, desesperadamente semelhantes, estonteados por sua própria multiplicidade – mas a Ideia de Humanidade é uma só. O Ser Humano platônico é verdadeiramente real; nós somos pobres aparências, fantasmas de carne e osso, cegos para a verdadeira face do mundo... A menos, é claro, que consigamos nos livrar da miragem dos sentidos e ascender à contemplação das Formas divinas. Um processo que o poeta-filósofo ilustra, tipicamente, com uma metáfora.
O mito, enfim
Foi no
Livro VII da República que Platão elaborou a alegoria mais célebre da
literatura. Conforme seu costume, o autor coloca a teoria na boca de Sócrates –
mas é provável que essa narrativa, assim como a doutrina por ela ilustrada,
seja de exclusiva autoria de Platão. Na República, Sócrates diz a um discípulo
chamado Gláucon: “Imagina uma grande cova subterrânea, provida de uma grande
entrada para a luz; e imagina um grupo de homens, presos desde meninos no
interior da caverna, amarrados pelos pés, pelas mãos e pelo pescoço; não podem
virar a cabeça, e são obrigados a olhar constantemente para o fundo da cova”.
Incapazes de observar o mundo lá fora, os prisioneiros da caverna veem apenas
as sombras que se desenham na parede de pedra – e, acostumados com a própria
cegueira, tomam aquelas sombras pela realidade. “Que estranha situação, e que
estranhos prisioneiros!”, exclama Gláucon. Sócrates replica: “Estranhos como
nós mesmos”.
Eventualmente
– prossegue a alegoria –, um dos prisioneiros consegue escapar aos grilhões e
sair à luz do sol. Inicialmente ofuscado, ele pouco a pouco se acostuma à visão
das coisas como elas realmente são. Caso permaneça lá em cima, esquecendo para
sempre sua anterior existência de escuridão, ele se tornará um místico; caso
retorne às profundezas, para tentar libertar seus irmãos da cegueira
existencial, ele se tornará um filósofo. E correrá o risco de ser tomado por
tolo ou subversivo: pois a reação natural dos prisioneiros é acreditar que
apenas as sombras existem; e o homem que viu a luz, desacostumado às trevas,
chegará até eles tropeçando como um inválido.
Execrar a
doutrina das Ideias tem sido um dos lugares comuns do pensamento moderno (e do
pós-moderno, e do hipermoderno; não levemos tão a sério a etiqueta dessas
nomenclaturas). O fato, contudo, é que o próprio Platão havia previsto os
limites de sua teoria. Em um de seus últimos diálogos, o Parmênides, ele se
pergunta: no mundo das coisas idealmente perfeitas, haverá também a Forma da
Feiura ou a Forma da Imperfeição? Acrescente-se: se tudo o que existe é reflexo
de uma Ideia divinamente concebida, então deve haver um Lodo ideal, uma Pústula
ideal ou – por que não? – um Idiota ideal... Platão deixa a questão em aberto –
como, por sinal, faz com a maior parte dos temas que tocou. Eis aí uma
contradição reveladora: modelo do pensador com aspirações sublimes e com sede
pelo absoluto, Platão não nos deixou soluções, mas debates infinitos. Em seus
diá logos, jamais sabemos ao certo quem está falando a verdade, quem está
gracejando ou quem está sendo alvo da zombaria do autor.
E, em meio às muitas
vozes que ecoam em seus textos, ele semeou intuições originais que ainda
desafiam o pensamento. Diz-nos ele à distância de séculos: este mundo, que
tentamos inutilmente apreender com nossos sentidos e descrever com a linguagem,
não é a realidade. E temos de admitir: talvez não seja, mesmo. Mas, nesse caso,
onde está o real inegável, incondicionado, final? Não nos voltemos a Platão em
busca de ajuda, pois ele não nos legou uma resposta definitiva, mas uma
tentação, um farol que pisca e oscila, um horizonte demasiado distante, mas que
ainda nos atrai como o canto das sereias (ou das Sereias?): a esperança da
transcendência
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