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By Ferramentas Blog

sábado, 28 de maio de 2011

Nietzsche


Razão e instinto


O prazer de viver e o fatalismo da existência iluminam a obra original do pensador alemão que marcou o século 20

Eternamente insatisfeito, eternamente incompreendido e provocador até o último fio do bigode, o alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi o maior enfant terrible da filosofia ocidental nos últimos dois séculos. Exemplo perfeito do pensador que realmente diz o que pensa sem máscaras nem firulas – uma virtude que hoje anda fora de moda –, ele cortejou o escândalo, brincou com a loucura e, por causa de sua teimosia, amargou uma vida solitária e infeliz. Sua recompensa é o fascínio perturbador que continua exercendo sobre gerações de inquietos leitores mais de 100 anos após sua morte: pode-se discordar de suas opiniões, mas é impossível não se enredar em sua prosa temperamental e vertiginosa. Escritor, poeta, músico e crítico da cultura, Nietzsche foi acima de tudo um pensador hiperbólico – em suas paixões, em seus rancores, em sua lucidez e em seu delírio.

A posteridade o recorda principalmente por suas obsessivas diatribes contra a moral cristã – é de sua lavra aquele mantra religiosamente repetido pelo ateísmo moderno: “Deus morreu”. A sanha antimoralista de Nietzsche domina seus últimos escritos, recheados de grandiloquência e amargura; a leitura de suas obras de juventude, contudo, mostra que ele foi muito mais que um profeta do niilismo e arauto da morte divina. A força original de seu pensamento é a revolta contra os exageros do racionalismo – sua controversa façanha foi atacar frontalmente a ideia de que a razão humana, por meio da lógica e do bom senso, possa estabelecer verdades absolutas e compreender até as profundezas mais obscuras do próprio homem. Contra esse fundamentalismo do intelecto, Nietzsche propôs a madura aceitação do que exista de irracional no universo e em nós mesmos – helenista eufórico, ele se inspirou na terrível sabedoria das tragédias gregas para elaborar sua mistura de pessimismo e afirmação da vida. Em vez do rigor religioso ou da fé científica, ele apregoou a liturgia do fenômeno estético, espécie de misticismo sem Deus, que vê na arte a única redenção possível para o ser humano – essa criatura estranha e fantástica que Nietzsche comparou, em uma de suas passagens famosas, a “uma corda atada sobre um abismo”.

Nietzsche

Influente como poucos, o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) iria não apenas marcar a história da filosofia mas também a estética e a política de nossa era.

Anticristo?

Ironicamente, o autoproclamado Anticristo da filosofia veio ao mundo em uma família de tradição religiosa. Era filho, neto e sobrinho de pastores protestantes – e ele próprio cogitou seguir essa carreira. Ainda criança, testemunhou a morte precoce do pai: vitimado por uma obscura doença nervosa, Karl Ludwig Nietzsche perdeu a lucidez e a vida aos 34 anos de idade. A moléstia foi misteriosamente diagnosticada como “amolecimento do cérebro”. O pequeno Nietzsche se convenceu de que aquele era um mal hereditário, vendo na morte do pai um augúrio de seu próprio destino.

Por volta dos 15 anos, o filho do pastor trocou os salmos religiosos pelos clássicos gregos. Alardeando sua perda de fé, brigou com a família, tornou-se um erudito precoce e, com apenas 24 anos, virou professor de língua e literatura grega na Universidade de Basileia. Em 1870, foi convocado pelo exército, servindo como assistente médico no campo de batalha, durante a Guerra Franco-Prussiana (experiência que arruinou a saúde do jovem gênio livresco). Enquanto cuidava de feridos, sob o estrondo dos canhões, ele começou a escrever sua primeira obra-prima: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. Publicado em 1872, o livro é um fascinante mergulho no espírito da antiga civilização grega, escrito numa prosa deliciosamente estranha, em que a reflexão filosófica flerta descaradamente com a poesia.

Para Nietzsche, as principais tragédias gregas – escritas por autores como Ésquilo e Sófocles no século 5 a.C. – contêm uma imagem profética da condição humana. Os heróis trágicos, como Édipo, Antígona e Prometeu, são levados à desgraça e à destruição por suas próprias virtudes. Contudo, em uma tragédia que se preze, a catástrofe não leva ao desespero total, mas a um misterioso consolo metafísico. A essência do mundo trágico está na capacidade de sorrir enquanto se mergulha no coração das trevas, e é isso que Nietzsche tenta resgatar, como antídoto para as mazelas e fraquezas de sua própria época: somos todos personagens de uma grande tragédia cósmica, e devemos viver de acordo com nossos papéis, sem recair no escapismo ou na lamúria. A chave da sabedoria está em aceitar o lado selvagem e transitório da vida – o que não significa renunciar a ela. Esse perigoso equilíbrio entre o prazer de viver e o fatalismo existencial é regido, na filosofia de Nietzsche, por duas figuras ao mesmo tempo opostas e complementares: os deuses Apolo e Dionísio, enfezados irmãos olímpicos, que entre socos e abraços regulam o estado de espírito da humanidade.

Na obra de Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco são dois impulsos ou visões de mundo que, ao longo dos séculos, se digladiam e se completam, determinando a postura humana diante da vida em diferentes épocas e lugares – e é na produção artística que esses polos se manifestam de forma mais clara. Na mitologia grega, Apolo é o deus da harmonia, da ordem, do comedimento, da civilização. Para Nietzsche, essa divindade altiva, serena e jovial representa a autoconfiança do ser humano e o desejo de conhecer e transformar humanamente o mundo. Sob a inspiração de Apolo, os homens tentam domar o caos do universo com a força da imaginação. O espírito apolíneo é o que separa o ser humano da natureza anárquica, e o leva a criar seu próprio mundo de ordem e beleza, recalcando o lado sombrio da existência. Escreve o poetafilósofo: “Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância – e que outra coisa é o homem? –, tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza sua própria essência. Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, de algum modo, tornam a existência digna de ser vivida”. O apolíneo leva o homem a desafiar o cosmos desumano e a criar a mais doce das ilusões – a vida em civilização. O melhor exemplo desse impulso são as artes visuais da Grécia antiga, com seu amor pelas proporções justas e por sentimentos bem dosados.

De tempos em tempos, contudo, o límpido reino de Apolo é invadido por seu irmão escandaloso e mal comportado. Deus da embriaguez, do êxtase e das emoções descontroladas, Dionísio é o símbolo da desmedida, do reencontro com a pulsão caótica da natureza. Pintores e escultores o representam com um sorriso ora maligno, ora sensual, e uma infalível taça de vinho nas mãos; nos tempos antigos, seus adoradores costumavam entregar-se a épicas bebedeiras e loucas orgias à luz do luar. Se o apolíneo tenta imortalizar as aparências criadas pelo homem, o dionisíaco quer rasgar o véu das ilusões e colocar-nos em contato com o verdadeiro fundamento da vida – o eterno ciclo de destruição e recriação do universo, regido por forças incompreensíveis, além do nosso entendimento. Dionísio traz a intuição de que todas as regras humanas, como a moralidade, são convenções (úteis ou não), abrindo-nos um espaço que está “além do bem e do mal” – expressão que dá título a outra obra famosa de Nietzsche. Mistura de terror e êxtase, em que a mente brinca com sua própria aniquilação, o dionisíaco dissolve a fronteira entre os indivíduos, o limite entre a cultura e a natureza, criando a experiência mística da unidade primordial. O homem vê seu próprio limite e é desafiado a intuir o que está além do humano. “Também a arte dionisíaca quer convencer-nos do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas”, escreve o autor em O Nascimento da Tragédia. “Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce está condenado a um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual – e não devemos, todavia, estarrecer-nos... Nós mesmos somos, por breves instantes, o ser primordial, e sentimos seu indomável prazer de existir.” A expressão máxima do dionisíaco é a música: arte sem formas, composta por emoções puras e desencarnadas. Na tragédia grega – que celebrava ao mesmo tempo a individualidade humana e o poder da fatalidade cósmica –, as forças dos dois irmãos olímpicos se contrabalançaram perfeitamente. Um belo e rápido equilíbrio, que existiu por um instante na história e depois desapareceu para não mais voltar.

Perigos do intelecto 

O “homem trágico”, modelo de conduta para Nietzsche, é aquele que conhece os limites do entendimento humano e, contudo, não perde a libido pela vida. Mantém os olhos alegremente fixos no abismo, oscilando entre a embriaguez e a forma. Para Nietzsche, essa difícil simetria foi rompida pelo triunfo do racionalismo, que ocorreu com a filosofia de Sócrates e Platão no século 4 a.C. Com eles, nasceu uma degeneração do apolíneo: o “homem teórico” que rechaça a sabedoria dionisíaca e só aprecia aquilo que pode compreender. Renunciando ao mistério, ele põe suas supostas verdades acima dos prazeres indecifráveis da arte e da vida. Basta uma rápida reflexão sobre nosso próprio tempo para constatarmos que a tirania do homem teórico continua a atravancar nosso caminho. Ao longo do último século, quantas teorias – vindas das mais diversas áreas – tentaram convencernos de que não temos o direito de desfrutar o simples prazer de um bom livro ou de uma boa pintura? Quantos intelectos rigorosos tentaram reduzir nosso gozo estético a alguns mecanismos sociais mais ou menos suspeitos e aburguesados? Perguntas retóricas, naturalmente, pois seria impossível contabilizar essa trupe de hermeneutas tediosos cujo nome é legião.

Após O Nascimento da Tragédia, Nietzsche continuou sua cruzada contra a tirania racionalista em obras cada vez mais ácidas e mordazes, enfiando seu dedo petulante nas feridas da civilização e recusando-lhe qualquer anestésico. Sua verve explosiva acabou lhe arruinando a carreira acadêmica e afastou- o dos amigos. Sua saúde, que sempre fora frágil, deteriorou-se precocemente: atormentado por moléstias como a difteria e a sífilis, Nietzsche começou a perder a voz e a visão, deixando a vida universitária aos 34 anos. Irritado com o crescente nacionalismo germânico, renunciou à cidadania alemã e passou a viver como um pensador nômade, sem Deus e sem pátria – morando em estalagens baratas ao redor da Europa e escrevendo livros atrás de livros em meio a dores de cabeça dilacerantes, cólicas e crises de vômito. Essa descida aos infernos completou- se aos 45 anos, quando a sombra da loucura, que sempre o havia rondado, atingiu- o de forma devastadora. Certo dia, andando pelas ruas de Turim, o filósofo avistou um cocheiro que fustigava cruelmente sua montaria. Aos gritos, Nietzsche se abraçou ao pescoço do cavalo, tentando protegêlo do chicote. Depois caiu no chão, desmaiado. Havia perdido a razão, e nunca mais a recobraria – até hoje não se sabe se o colapso foi causado pela sífilis, pela genética ou por motivos mais obscuros. Nietzsche morreu em Weimar, pobre e louco, em 1900.

Cem anos após o ato final dessa tragédia, a obra de seu anti-herói desgrenhado e apátrida continua fonte inesgotável de perturbação e inspiração. Loucamente lúcido, ele continua a lançar-nos seu desafio: conseguiremos aceitar o estranho, o obscuro e o caótico em nós mesmos, sem cair no precipício? O próprio Nietzsche tropeçou em sua busca do ideal trágico: embora pregasse o equilíbrio entre Apolo e Dionísio, acabou resvalando para o lado da desmedida – prova disso é o hermetismo e a megalomania de alguns de seus últimos escritos. Mas, apesar das polêmicas sempre vivas, nem os detratores mais enfurecidos negaram a Nietzsche sua primeira e derradeira virtude: ele foi um grande escritor e expressou como poucos a fragilidade heroica do homem em um mundo nem sempre acolhedor e raramente compreensível.

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