Razão e instinto
O prazer de viver e o fatalismo da
existência iluminam a obra original do pensador alemão que marcou o século 20
Eternamente insatisfeito, eternamente incompreendido e provocador até o
último fio do bigode, o alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi o
maior enfant terrible da filosofia ocidental nos últimos dois séculos. Exemplo
perfeito do pensador que realmente diz o que pensa sem máscaras nem firulas –
uma virtude que hoje anda fora de moda –, ele cortejou o escândalo, brincou com
a loucura e, por causa de sua teimosia, amargou uma vida solitária e infeliz.
Sua recompensa é o fascínio perturbador que continua exercendo sobre gerações
de inquietos leitores mais de 100 anos após sua morte: pode-se discordar de
suas opiniões, mas é impossível não se enredar em sua prosa temperamental e
vertiginosa. Escritor, poeta, músico e crítico da cultura, Nietzsche foi acima
de tudo um pensador hiperbólico – em suas paixões, em seus rancores, em sua
lucidez e em seu delírio.
A posteridade o recorda principalmente por suas obsessivas diatribes
contra a moral cristã – é de sua lavra aquele mantra religiosamente repetido
pelo ateísmo moderno: “Deus morreu”. A sanha antimoralista de Nietzsche domina
seus últimos escritos, recheados de grandiloquência e amargura; a leitura de
suas obras de juventude, contudo, mostra que ele foi muito mais que um profeta
do niilismo e arauto da morte divina. A força original de seu pensamento é a
revolta contra os exageros do racionalismo – sua controversa façanha foi atacar
frontalmente a ideia de que a razão humana, por meio da lógica e do bom senso,
possa estabelecer verdades absolutas e compreender até as profundezas mais
obscuras do próprio homem. Contra esse fundamentalismo do intelecto, Nietzsche
propôs a madura aceitação do que exista de irracional no universo e em nós
mesmos – helenista eufórico, ele se inspirou na terrível sabedoria das tragédias
gregas para elaborar sua mistura de pessimismo e afirmação da vida. Em vez do
rigor religioso ou da fé científica, ele apregoou a liturgia do fenômeno
estético, espécie de misticismo sem Deus, que vê na arte a única redenção
possível para o ser humano – essa criatura estranha e fantástica que Nietzsche
comparou, em uma de suas passagens famosas, a “uma corda atada sobre um
abismo”.
Nietzsche
Influente como poucos, o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900)
iria não apenas marcar a história da filosofia mas também a estética e a
política de nossa era.
Anticristo?
Ironicamente, o autoproclamado Anticristo da filosofia veio ao mundo em
uma família de tradição religiosa. Era filho, neto e sobrinho de pastores
protestantes – e ele próprio cogitou seguir essa carreira. Ainda criança,
testemunhou a morte precoce do pai: vitimado por uma obscura doença nervosa,
Karl Ludwig Nietzsche perdeu a lucidez e a vida aos 34 anos de idade. A
moléstia foi misteriosamente diagnosticada como “amolecimento do cérebro”. O
pequeno Nietzsche se convenceu de que aquele era um mal hereditário, vendo na
morte do pai um augúrio de seu próprio destino.
Por volta dos 15 anos, o filho do pastor trocou os salmos religiosos
pelos clássicos gregos. Alardeando sua perda de fé, brigou com a família,
tornou-se um erudito precoce e, com apenas 24 anos, virou professor de língua e
literatura grega na Universidade de Basileia. Em 1870, foi convocado pelo
exército, servindo como assistente médico no campo de batalha, durante a Guerra
Franco-Prussiana (experiência que arruinou a saúde do jovem gênio livresco).
Enquanto cuidava de feridos, sob o estrondo dos canhões, ele começou a escrever
sua primeira obra-prima: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.
Publicado em 1872, o livro é um fascinante mergulho no espírito da antiga
civilização grega, escrito numa prosa deliciosamente estranha, em que a
reflexão filosófica flerta descaradamente com a poesia.
Para Nietzsche, as principais tragédias gregas – escritas por autores
como Ésquilo e Sófocles no século 5 a.C. – contêm uma imagem profética da
condição humana. Os heróis trágicos, como Édipo, Antígona e Prometeu, são
levados à desgraça e à destruição por suas próprias virtudes. Contudo, em uma
tragédia que se preze, a catástrofe não leva ao desespero total, mas a um
misterioso consolo metafísico. A essência do mundo trágico está na capacidade
de sorrir enquanto se mergulha no coração das trevas, e é isso que Nietzsche
tenta resgatar, como antídoto para as mazelas e fraquezas de sua própria época:
somos todos personagens de uma grande tragédia cósmica, e devemos viver de
acordo com nossos papéis, sem recair no escapismo ou na lamúria. A chave da
sabedoria está em aceitar o lado selvagem e transitório da vida – o que não
significa renunciar a ela. Esse perigoso equilíbrio entre o prazer de viver e o
fatalismo existencial é regido, na filosofia de Nietzsche, por duas figuras ao
mesmo tempo opostas e complementares: os deuses Apolo e Dionísio, enfezados
irmãos olímpicos, que entre socos e abraços regulam o estado de espírito da
humanidade.
Na obra de Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco são dois impulsos ou
visões de mundo que, ao longo dos séculos, se digladiam e se completam,
determinando a postura humana diante da vida em diferentes épocas e lugares – e
é na produção artística que esses polos se manifestam de forma mais clara. Na
mitologia grega, Apolo é o deus da harmonia, da ordem, do comedimento, da
civilização. Para Nietzsche, essa divindade altiva, serena e jovial representa
a autoconfiança do ser humano e o desejo de conhecer e transformar humanamente
o mundo. Sob a inspiração de Apolo, os homens tentam domar o caos do universo
com a força da imaginação. O espírito apolíneo é o que separa o ser humano da
natureza anárquica, e o leva a criar seu próprio mundo de ordem e beleza,
recalcando o lado sombrio da existência. Escreve o poetafilósofo: “Se
pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância – e que outra coisa é o
homem? –, tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão
magnífica que cobrisse com um véu de beleza sua própria essência. Eis o
verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob seu nome reunimos todas aquelas
inumeráveis ilusões da bela aparência que, de algum modo, tornam a existência
digna de ser vivida”. O apolíneo leva o homem a desafiar o cosmos desumano e a
criar a mais doce das ilusões – a vida em civilização. O melhor exemplo desse
impulso são as artes visuais da Grécia antiga, com seu amor pelas proporções
justas e por sentimentos bem dosados.
De tempos em tempos, contudo, o límpido reino de Apolo é invadido por
seu irmão escandaloso e mal comportado. Deus da embriaguez, do êxtase e das
emoções descontroladas, Dionísio é o símbolo da desmedida, do reencontro com a
pulsão caótica da natureza. Pintores e escultores o representam com um sorriso
ora maligno, ora sensual, e uma infalível taça de vinho nas mãos; nos tempos
antigos, seus adoradores costumavam entregar-se a épicas bebedeiras e loucas
orgias à luz do luar. Se o apolíneo tenta imortalizar as aparências criadas
pelo homem, o dionisíaco quer rasgar o véu das ilusões e colocar-nos em contato
com o verdadeiro fundamento da vida – o eterno ciclo de destruição e recriação
do universo, regido por forças incompreensíveis, além do nosso entendimento.
Dionísio traz a intuição de que todas as regras humanas, como a moralidade, são
convenções (úteis ou não), abrindo-nos um espaço que está “além do bem e do
mal” – expressão que dá título a outra obra famosa de Nietzsche. Mistura de
terror e êxtase, em que a mente brinca com sua própria aniquilação, o
dionisíaco dissolve a fronteira entre os indivíduos, o limite entre a cultura e
a natureza, criando a experiência mística da unidade primordial. O homem vê seu
próprio limite e é desafiado a intuir o que está além do humano. “Também a arte
dionisíaca quer convencer-nos do eterno prazer da existência: só que não
devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas”, escreve o
autor em O Nascimento da Tragédia. “Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce
está condenado a um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos
horrores da existência individual – e não devemos, todavia, estarrecer-nos...
Nós mesmos somos, por breves instantes, o ser primordial, e sentimos seu
indomável prazer de existir.” A expressão máxima do dionisíaco é a música: arte
sem formas, composta por emoções puras e desencarnadas. Na tragédia grega – que
celebrava ao mesmo tempo a individualidade humana e o poder da fatalidade
cósmica –, as forças dos dois irmãos olímpicos se contrabalançaram
perfeitamente. Um belo e rápido equilíbrio, que existiu por um instante na
história e depois desapareceu para não mais voltar.
Perigos do intelecto
O “homem trágico”, modelo de conduta para Nietzsche, é aquele que
conhece os limites do entendimento humano e, contudo, não perde a libido pela
vida. Mantém os olhos alegremente fixos no abismo, oscilando entre a embriaguez
e a forma. Para Nietzsche, essa difícil simetria foi rompida pelo triunfo do
racionalismo, que ocorreu com a filosofia de Sócrates e Platão no século 4 a.C.
Com eles, nasceu uma degeneração do apolíneo: o “homem teórico” que rechaça a
sabedoria dionisíaca e só aprecia aquilo que pode compreender. Renunciando ao
mistério, ele põe suas supostas verdades acima dos prazeres indecifráveis da
arte e da vida. Basta uma rápida reflexão sobre nosso próprio tempo para
constatarmos que a tirania do homem teórico continua a atravancar nosso
caminho. Ao longo do último século, quantas teorias – vindas das mais diversas
áreas – tentaram convencernos de que não temos o direito de desfrutar o simples
prazer de um bom livro ou de uma boa pintura? Quantos intelectos rigorosos
tentaram reduzir nosso gozo estético a alguns mecanismos sociais mais ou menos
suspeitos e aburguesados? Perguntas retóricas, naturalmente, pois seria
impossível contabilizar essa trupe de hermeneutas tediosos cujo nome é legião.
Após O Nascimento da Tragédia, Nietzsche continuou sua cruzada contra a
tirania racionalista em obras cada vez mais ácidas e mordazes, enfiando seu
dedo petulante nas feridas da civilização e recusando-lhe qualquer anestésico.
Sua verve explosiva acabou lhe arruinando a carreira acadêmica e afastou- o dos
amigos. Sua saúde, que sempre fora frágil, deteriorou-se precocemente:
atormentado por moléstias como a difteria e a sífilis, Nietzsche começou a
perder a voz e a visão, deixando a vida universitária aos 34 anos. Irritado com
o crescente nacionalismo germânico, renunciou à cidadania alemã e passou a
viver como um pensador nômade, sem Deus e sem pátria – morando em estalagens
baratas ao redor da Europa e escrevendo livros atrás de livros em meio a dores
de cabeça dilacerantes, cólicas e crises de vômito. Essa descida aos infernos
completou- se aos 45 anos, quando a sombra da loucura, que sempre o havia
rondado, atingiu- o de forma devastadora. Certo dia, andando pelas ruas de
Turim, o filósofo avistou um cocheiro que fustigava cruelmente sua montaria.
Aos gritos, Nietzsche se abraçou ao pescoço do cavalo, tentando protegêlo do
chicote. Depois caiu no chão, desmaiado. Havia perdido a razão, e nunca mais a
recobraria – até hoje não se sabe se o colapso foi causado pela sífilis, pela
genética ou por motivos mais obscuros. Nietzsche morreu em Weimar, pobre e
louco, em 1900.
Cem anos após o ato final
dessa tragédia, a obra de seu anti-herói desgrenhado e apátrida continua fonte
inesgotável de perturbação e inspiração. Loucamente lúcido, ele continua a
lançar-nos seu desafio: conseguiremos aceitar o estranho, o obscuro e o caótico
em nós mesmos, sem cair no precipício? O próprio Nietzsche tropeçou em sua
busca do ideal trágico: embora pregasse o equilíbrio entre Apolo e Dionísio,
acabou resvalando para o lado da desmedida – prova disso é o hermetismo e a
megalomania de alguns de seus últimos escritos. Mas, apesar das polêmicas
sempre vivas, nem os detratores mais enfurecidos negaram a Nietzsche sua
primeira e derradeira virtude: ele foi um grande escritor e expressou como
poucos a fragilidade heroica do homem em um mundo nem sempre acolhedor e
raramente compreensível.
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