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By Ferramentas Blog

sábado, 28 de maio de 2011

Montaigne


A amizade

Autor dos Ensaios, obra que exala a nostalgia de uma amizade perdida, Michel de Montaigne concluiu que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.
Um filósofo que zombava da filosofia. Um cético que acreditava em Deus e renegava o ateísmo. Um amante da paz e da tranquilidade, que adorava o som e a fúria das batalhas. Um misantropo que valorizava a amizade acima de todas as coisas. Essas e muitas outras contradições se encontram, em fascinante desarmonia, no vertiginoso autorretrato que o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) traça em sua única e maciça obra: Ensaios, livro indispensável não apenas para aqueles interessados em filosofia como para todos os amantes da boa literatura. Nascido em uma época de transformações, maravilhas e catástrofes, Montaigne testemunhou e viveu grandes reviravoltas históricas: a ascensão da burguesia, a descoberta de terras exóticas no Novo Mundo e os conflitos sanguinários entre católicos e protestantes. Em meio a esse mundo caótico e muitas vezes brutal, ele escolheu a si mesmo como objeto de reflexão – e compôs o mapa deliciosamente contraditório de sua própria alma, em escritos cheios de introspecção e exuberância, humor e melancolia.

Para alguns, Montaigne foi o maior porta-voz do ceticismo na idade moderna – colocando em suspenso todas as certezas absolutas, ele preparou o caminho para o iluminismo de Voltaire e Montesquieu. A grande originalidade de Montaigne, contudo, não é a negação da Verdade maiúscula, mas a busca de verdades possíveis e transitórias (e nem por isso menos significativas) nas obscuras fronteiras da personalidade humana. A filosofia ocidental, até então, havia encarado a Razão como uma ferramenta impessoal para a compreensão absoluta do universo: com Montaigne, o pensamento deixa de ser uma busca etérea por certezas fixas e se transforma em um olhar visceral e dinâmico para o interior do próprio indivíduo. Quatro séculos antes da invenção da psicanálise, esse pensador excêntrico, amigável e solitário já havia concluído que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.

Montaigne

Filósofo “moderno” e criador de um gênero literário, o ensaio, Michel de Montaigne nasceu em 1533 e morreu em 1592. Onívoro, parecia interessado em pensar sobre tudo.

O grande amigo

Nascido em uma família de burgueses enriquecidos no comércio, Michel de Montaigne foi educado para se tornar um perfeito cavalheiro – seu pai, como muitos novosricos na época, queria apagar da árvore genealógica todas as marcas da origem plebeia. Antes mesmo de aprender o francês, o menino foi instruído no latim. Os familiares e serviçais da casa estavam proibidos de falar qualquer outra língua – e, até os 6 anos de idade, Montaigne conversava apenas no idioma de Cícero. Até a adolescência, o rapaz viveu sem obrigações: passava muito tempo lendo e sonhando, numa doce vida embalada por preguiçosas elucubrações. O gosto pela solidão contemplativa, adquirido tão cedo, haveria de acompanhá-lo até a velhice.

Montaigne só foi arrancado daquele ocioso paraíso aos 13 anos. Enviado a Toulouse, estudou Direito e ocupou o cargo de conselheiro legal em tribunais e parlamentos. Mais tarde, tornou-se cortesão no reinado de Carlos IX. Participou de cercos e grandes batalhas e, embora lhe repugnasse o derramamento inútil de sangue, Montaigne jamais negou o fascínio que sentia pela ação e pelo perigo. No burburinho da corte, por outro lado, ele aprendeu as manhas da alta sociedade e se tornou um renomado mulherengo e beberrão – mas sua devassidão era acompanhada por uma forte dose de melancolia. Sonhador e individualista, Montaigne sempre teve dificuldade em fazer amigos íntimos. Até que, aos 24 anos, conheceu o poeta e erudito Étienne de La Boétie.

Três anos mais velho que Montaigne, La Boétie era um homem de múltiplos talentos e interesses. Versado nas línguas antigas, ele escrevia sonetos em grego, latim e francês com idêntica fluência. Ainda muito jovem, ficou célebre pela obra Discurso Sobre a Servidão Voluntária, um libelo contra a tirania, escrito com a dicção solene dos clássicos da Antiguidade. 

Ao encontrar La Boétie, em Toulouse, já nutria por ele uma imensa admiração intelectual. Em breve, esses dois latinistas libertinos começaram a descobrir suas infinitas afinidades. Ambos amavam com idêntico fervor o vinho, as curvas femininas e a literatura; ambos veneravam a ética cavalheiresca e a individualidade de pensamento. E mais: numa época dilacerada pelos conflitos entre católicos e protestantes, ambos defendiam a tolerância religiosa e a convivência de ideias opostas. Durante quatro anos, em meio a bebedeiras e recitações da Eneida, Montaigne e La Boétie desfrutaram de uma dessas amizades hiperbólicas que às vezes parecem beirar a paixão platônica. “Se insistirem para que eu diga por que o amava”, escreveria Montaigne anos depois, “sinto que não saberei me expressar, senão respondendo: porque ele era ele; porque eu era eu”.

Uma boa fé

Aos 29 anos, contudo, Montaigne foi subitamente privado de seu companheiro de prazeres e confrade de leituras: derrotado por uma grave crise de disenteria, La Boétie morreu após uma agonia lenta e dolorosa. Ao que tudo indica, foi a dor dessa perda que levou Montaigne a se refugiar – e se reencontrar – na escrita. Desgostoso com o mundo, o hedonista se transformou em eremita: abandonou as funções públicas em 1570 e se retirou para a propriedade rural que herdara da família, mergulhando na solidão. A partir daí, passaria a maior parte do tempo encerrado na torre do castelo, cercado pelos mais de 1500 volumes de sua biblioteca.

 Naquele isolado éden livresco, ele encontrou o único substituto possível para o amigo morto: nós, os infinitos leitores do futuro. É a essa legião de amigos invisíveis e íntimos que ele dirige a célebre advertência na primeira página dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa fé... Sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empre gues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância”. É com essa irônica mesura que Montaigne nos convida a adentrar a turbulenta morada de sua alma.

E ele nos conduz por esse labirinto sem nos prometer conclusões definitivas e reconfortantes. A palavra essai, na época, significava “tentativa”. E é assim, às apalpadelas e aos tropeções, que Montaigne escreve sobre temas tão variados quanto a guerra, a equitação, a gastronomia, a botânica, o medo, as vestimentas, a tosse, os espirros, a flatulência, as carruagens, as virtudes e as fraquezas do órgão sexual masculino, os hábitos funerários dos antigos indianos, as viagens marítimas, a amizade, a solidão, a morte, os cálculos renais (apenas a enumeração exaustiva pode traduzir o gostinho de suas maravilhosas digressões). À primeira vista, os Ensaios são uma estonteante enciclopédia sobre tudo e sobre nada. Mas o tema central dessa epopeia sem método e sem jargões é o próprio Montaigne – o qual, por meio da autoanálise, acaba encontrando em si mesmo uma janela para a investigação de toda a humanidade.

Essa investigação, por sinal, não leva a uma verdade única, mas abre as comportas do entendimento para a multidão de verdades individuais que compõem o ser humano. Com seu afável ceticismo, Montaigne considera a Razão humana incapaz de resolver as questões transcendentes do universo – por exemplo, a existência de Deus e a imortalidade da alma.

 Para o autor, a própria descrença é um ato de fé. Perante dilemas insolúveis – como o são a maior parte dos temas da filosofia universal –, Montaigne não sugere uma resposta, mas uma pergunta: “Que sei eu?” A única coisa que podemos conhecer realmente somos nós mesmos; e, conhecendo-nos, podemos começar a compreender os outros. Pois, como nos diz o solitário habitante da torre, em seu tom oscilante entre a gravidade e o devaneio, “todo homem traz em si a forma total da condição humana”.

A tolerância

Os Ensaios nasceram da nostalgia por uma amizade perdida – e não é exagero dizer que sua leitura, mesmo cinco séculos depois, é uma experiência semelhante à do contato direto e afetuoso com outro ser humano. Ler Montaigne é conhecê-lo intimamente, inclusive em seus defeitos. É graças à sinceridade radical do autor que conhecemos sua velada misoginia, sua indiferença em relação à esposa e aos filhos e suas rabugices. Não raro, ele pinta a si mesmo como inculto, grosseiro ou mesmo bobalhão – e o faz sempre com uma piscadela de ironia para o leitor. “Tenho uma maneira de pensar que me isola dos outros e, por outro lado, sou de uma ignorância pueril sobre o que todo mundo sabe. Esses defeitos valeram-me a reputação de bobo, que assenta em cinco ou seis fatos reais”, comenta, sem cerimônia, como se nos tivesse ao seu lado, no alto da torre, bebericando um vinho.

Ao lado dessas confissões despudoradas, encontramos virtudes que fazem de Montaigne um guia sábio. De inestimável valor para nossa época é sua defesa da tolerância. Dono de uma inesgotável curiosidade sobre outros povos, Montaigne salpica em seus escritos elogios às civilizações judaica e islâmica e aos indígenas do Novo Mundo – tudo isso no mesmo período em que a Inquisição calcinava hereges e os conquistadores ibéricos massacravam os “selvagens” das Américas.

Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.

Comparando o canibalismo indígena com a selvageria das perseguições religiosas na Europa, Montaigne aponta para uma sabedoria árdua, mas profunda, cuja utilidade é inegável em uma época como a nossa, dilacerada por ódios novos e antigos e obcecada com supostos “choques de civilizações”: o bem e o mal, a civilização e a barbárie estão misturados em todas as culturas, de forma indistinguível, e jamais formam compartimentos estanques. O homem, afinal de contas, é um “pobre animal” preso em um mundo que não pode decifrar; mas nesse universo caótico resta-nos a possibilidade de compreender uns aos outros – ou, pelo menos, tentar. É nesse sentido que Montaigne nos lega outra herança preciosa: o sentimento de humanidade, que nos une a todos em nossas limitações e mesquinharias, mas que abre a possibilidade de uma fraternidade universal, maior que as pátrias e as línguas. “Considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns”, escreveu ele, em um de seus muitos manifestos pela amizade entre os povos. E acrescenta, citando um exemplo tirado de Heródoto: “A natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares – tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas, e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo”.

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