A amizade
Autor dos Ensaios, obra que exala a
nostalgia de uma amizade perdida, Michel de Montaigne concluiu que, para
compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.
Um filósofo que zombava da filosofia. Um cético que acreditava em Deus e
renegava o ateísmo. Um amante da paz e da tranquilidade, que adorava o som e a
fúria das batalhas. Um misantropo que valorizava a amizade acima de todas as
coisas. Essas e muitas outras contradições se encontram, em fascinante
desarmonia, no vertiginoso autorretrato que o pensador francês Michel de
Montaigne (1533-1592) traça em sua única e maciça obra: Ensaios, livro
indispensável não apenas para aqueles interessados em filosofia como para todos
os amantes da boa literatura. Nascido em uma época de transformações,
maravilhas e catástrofes, Montaigne testemunhou e viveu grandes reviravoltas
históricas: a ascensão da burguesia, a descoberta de terras exóticas no Novo
Mundo e os conflitos sanguinários entre católicos e protestantes. Em meio a
esse mundo caótico e muitas vezes brutal, ele escolheu a si mesmo como objeto
de reflexão – e compôs o mapa deliciosamente contraditório de sua própria alma,
em escritos cheios de introspecção e exuberância, humor e melancolia.
Para alguns, Montaigne foi o maior porta-voz do ceticismo na idade
moderna – colocando em suspenso todas as certezas absolutas, ele preparou o
caminho para o iluminismo de Voltaire e Montesquieu. A grande originalidade de
Montaigne, contudo, não é a negação da Verdade maiúscula, mas a busca de
verdades possíveis e transitórias (e nem por isso menos significativas) nas
obscuras fronteiras da personalidade humana. A filosofia ocidental, até então,
havia encarado a Razão como uma ferramenta impessoal para a compreensão
absoluta do universo: com Montaigne, o pensamento deixa de ser uma busca etérea
por certezas fixas e se transforma em um olhar visceral e dinâmico para o
interior do próprio indivíduo. Quatro séculos antes da invenção da psicanálise,
esse pensador excêntrico, amigável e solitário já havia concluído que, para
compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.
Montaigne
Filósofo “moderno” e criador de um gênero literário, o ensaio, Michel de
Montaigne nasceu em 1533 e morreu em 1592. Onívoro, parecia interessado em
pensar sobre tudo.
O grande amigo
Nascido em uma família de burgueses enriquecidos no comércio, Michel de
Montaigne foi educado para se tornar um perfeito cavalheiro – seu pai, como
muitos novosricos na época, queria apagar da árvore genealógica todas as marcas
da origem plebeia. Antes mesmo de aprender o francês, o menino foi instruído no
latim. Os familiares e serviçais da casa estavam proibidos de falar qualquer
outra língua – e, até os 6 anos de idade, Montaigne conversava apenas no idioma
de Cícero. Até a adolescência, o rapaz viveu sem obrigações: passava muito
tempo lendo e sonhando, numa doce vida embalada por preguiçosas elucubrações. O
gosto pela solidão contemplativa, adquirido tão cedo, haveria de acompanhá-lo
até a velhice.
Montaigne só foi arrancado daquele ocioso paraíso aos 13 anos. Enviado a
Toulouse, estudou Direito e ocupou o cargo de conselheiro legal em tribunais e
parlamentos. Mais tarde, tornou-se cortesão no reinado de Carlos IX. Participou
de cercos e grandes batalhas e, embora lhe repugnasse o derramamento inútil de
sangue, Montaigne jamais negou o fascínio que sentia pela ação e pelo perigo.
No burburinho da corte, por outro lado, ele aprendeu as manhas da alta
sociedade e se tornou um renomado mulherengo e beberrão – mas sua devassidão
era acompanhada por uma forte dose de melancolia. Sonhador e individualista,
Montaigne sempre teve dificuldade em fazer amigos íntimos. Até que, aos 24
anos, conheceu o poeta e erudito Étienne de La Boétie.
Três anos mais velho que Montaigne, La Boétie era um homem de múltiplos
talentos e interesses. Versado nas línguas antigas, ele escrevia sonetos em
grego, latim e francês com idêntica fluência. Ainda muito jovem, ficou célebre
pela obra Discurso Sobre a Servidão Voluntária, um libelo contra a tirania,
escrito com a dicção solene dos clássicos da Antiguidade.
Ao encontrar La Boétie, em Toulouse, já
nutria por ele uma imensa admiração intelectual. Em breve, esses dois
latinistas libertinos começaram a descobrir suas infinitas afinidades. Ambos
amavam com idêntico fervor o vinho, as curvas femininas e a literatura; ambos
veneravam a ética cavalheiresca e a individualidade de pensamento. E mais: numa
época dilacerada pelos conflitos entre católicos e protestantes, ambos
defendiam a tolerância religiosa e a convivência de ideias opostas. Durante
quatro anos, em meio a bebedeiras e recitações da Eneida, Montaigne e La Boétie
desfrutaram de uma dessas amizades hiperbólicas que às vezes parecem beirar a
paixão platônica. “Se insistirem para que eu diga por que o amava”, escreveria
Montaigne anos depois, “sinto que não saberei me expressar, senão respondendo:
porque ele era ele; porque eu era eu”.
Uma boa fé
Aos 29 anos, contudo, Montaigne foi subitamente privado de seu
companheiro de prazeres e confrade de leituras: derrotado por uma grave crise
de disenteria, La Boétie morreu após uma agonia lenta e dolorosa. Ao que tudo
indica, foi a dor dessa perda que levou Montaigne a se refugiar – e se
reencontrar – na escrita. Desgostoso com o mundo, o hedonista se transformou em
eremita: abandonou as funções públicas em 1570 e se retirou para a propriedade
rural que herdara da família, mergulhando na solidão. A partir daí, passaria a
maior parte do tempo encerrado na torre do castelo, cercado pelos mais de 1500
volumes de sua biblioteca.
Naquele isolado éden livresco, ele encontrou o único
substituto possível para o amigo morto: nós, os infinitos leitores do futuro. É
a essa legião de amigos invisíveis e íntimos que ele dirige a célebre
advertência na primeira página dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa
fé... Sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente
para que não empre gues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima
importância”. É com essa irônica mesura que Montaigne nos convida a adentrar a
turbulenta morada de sua alma.
E ele nos conduz por esse labirinto sem nos prometer conclusões
definitivas e reconfortantes. A palavra essai, na época, significava
“tentativa”. E é assim, às apalpadelas e aos tropeções, que Montaigne escreve
sobre temas tão variados quanto a guerra, a equitação, a gastronomia, a
botânica, o medo, as vestimentas, a tosse, os espirros, a flatulência, as
carruagens, as virtudes e as fraquezas do órgão sexual masculino, os hábitos
funerários dos antigos indianos, as viagens marítimas, a amizade, a solidão, a
morte, os cálculos renais (apenas a enumeração exaustiva pode traduzir o
gostinho de suas maravilhosas digressões). À primeira vista, os Ensaios são uma
estonteante enciclopédia sobre tudo e sobre nada. Mas o tema central dessa
epopeia sem método e sem jargões é o próprio Montaigne – o qual, por meio da
autoanálise, acaba encontrando em si mesmo uma janela para a investigação de
toda a humanidade.
Essa investigação, por sinal, não leva a uma verdade única, mas abre as
comportas do entendimento para a multidão de verdades individuais que compõem o
ser humano. Com seu afável ceticismo, Montaigne considera a Razão humana
incapaz de resolver as questões transcendentes do universo – por exemplo, a
existência de Deus e a imortalidade da alma.
Para o autor, a própria descrença
é um ato de fé. Perante dilemas insolúveis – como o são a maior parte dos temas
da filosofia universal –, Montaigne não sugere uma resposta, mas uma pergunta:
“Que sei eu?” A única coisa que podemos conhecer realmente somos nós mesmos; e,
conhecendo-nos, podemos começar a compreender os outros. Pois, como nos diz o
solitário habitante da torre, em seu tom oscilante entre a gravidade e o
devaneio, “todo homem traz em si a forma total da condição humana”.
A tolerância
Os Ensaios nasceram da nostalgia por uma amizade perdida – e não é
exagero dizer que sua leitura, mesmo cinco séculos depois, é uma experiência
semelhante à do contato direto e afetuoso com outro ser humano. Ler Montaigne é
conhecê-lo intimamente, inclusive em seus defeitos. É graças à sinceridade
radical do autor que conhecemos sua velada misoginia, sua indiferença em
relação à esposa e aos filhos e suas rabugices. Não raro, ele pinta a si mesmo
como inculto, grosseiro ou mesmo bobalhão – e o faz sempre com uma piscadela de
ironia para o leitor. “Tenho uma maneira de pensar que me isola dos outros e,
por outro lado, sou de uma ignorância pueril sobre o que todo mundo sabe. Esses
defeitos valeram-me a reputação de bobo, que assenta em cinco ou seis fatos
reais”, comenta, sem cerimônia, como se nos tivesse ao seu lado, no alto da
torre, bebericando um vinho.
Ao lado dessas confissões despudoradas, encontramos virtudes que fazem
de Montaigne um guia sábio. De inestimável valor para nossa época é sua defesa
da tolerância. Dono de uma inesgotável curiosidade sobre outros povos,
Montaigne salpica em seus escritos elogios às civilizações judaica e islâmica e
aos indígenas do Novo Mundo – tudo isso no mesmo período em que a Inquisição
calcinava hereges e os conquistadores ibéricos massacravam os “selvagens” das
Américas.
Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os
parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu
sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de
dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de
antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no
multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece
reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo
a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me
parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de
condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho
pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em
fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto,
com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo
isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e
comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos
como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais;
mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos
em toda sorte de barbaridades”.
Comparando o canibalismo indígena com a selvageria das perseguições
religiosas na Europa, Montaigne aponta para uma sabedoria árdua, mas profunda,
cuja utilidade é inegável em uma época como a nossa, dilacerada por ódios novos
e antigos e obcecada com supostos “choques de civilizações”: o bem e o mal, a
civilização e a barbárie estão misturados em todas as culturas, de forma
indistinguível, e jamais formam compartimentos estanques. O homem, afinal de
contas, é um “pobre animal” preso em um mundo que não pode decifrar; mas nesse
universo caótico resta-nos a possibilidade de compreender uns aos outros – ou,
pelo menos, tentar. É nesse sentido que Montaigne nos lega outra herança
preciosa: o sentimento de humanidade, que nos une a todos em nossas limitações
e mesquinharias, mas que abre a possibilidade de uma fraternidade universal,
maior que as pátrias e as línguas. “Considero todos os homens meus compatriotas
e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos
universais e comuns”, escreveu ele, em um de seus muitos manifestos pela
amizade entre os povos. E acrescenta, citando um exemplo tirado de Heródoto: “A
natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares
– tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio
Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas,
e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo”.
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