A humildade
Uma lição de sabedoria com o pensador que tinha
consciência de sua própria ignorância.
O
filósofo grego Sócrates foi um dos poucos personagens históricos que mudaram os
rumos do pensamento humano sem ter deixado uma única linha por escrito. Outros
membros desse seleto clube são Buda e Jesus Cristo; ao contrário deles,
Sócrates não fundou religião alguma, mas sua vida e personalidade estão até
hoje cercadas por uma aura de mistério muito próxima à dos místicos e dos
santos (no Islã medieval, aliás, ele era conhecido como o “profeta da Grécia
antiga”). Considerado por alguns historiadores como o fundador da filosofia
ocidental, ele é até hoje uma das figuras mais controversas e obscuras na
história das ideias: tudo o que sabemos sobre ele é um punhado de fatos
esparsos, relatados nas obras nada imparciais de seus fervorosos discípulos e
seus igualmente entusiasmados detratores. O amor e o ódio a Sócrates, por
sinal, são dois vetores constantes na história da filosofia: um jogo de
veneração e repulsa que já rendeu muito arranca-rabo metafísico.
Grande
parte do que sabemos sobre Sócrates está contido na obra de seu discípulo mais
famoso, Platão – nos textos conhecidos como Diálogos, ele retratou as
incansáveis discussões filosóficas entabuladas pelo mestre. Uma das questões
mais espinhosas na história da filosofia é, precisamente, fazer a distinção
entre o pensamento de Sócrates e o de seu discípulo-biógrafo. Contudo, por mais
difícil que seja determinar o teor exato das ideias socráticas, o que ninguém
nega é a importância descomunal do método de filosofar empregado por ele: a
dialética ou, tirando em miúdos, a arte do diálogo. Para compreendê- la, é
preciso dar uma olhadela no fascinante mundo em que Sócrates viveu e filosofou
– a Grécia do século 5 a.C.
Quando
Sócrates nasceu, por volta de 469 a.C., os gregos haviam acabado de derrotar a
Pérsia – a superpotência expansionista da época – nas chamadas Guerras Médicas.
O triunfo militar abriu as portas para um dos períodos mais férteis da
civilização ocidental. Atenas se tornou senhora de um vasto império marítimo e
centro de uma cultura efervescente. Por meio de uma série de reformas
políticas, os atenienses aperfeiçoaram o sistema de governo que haviam adotado
no século 6 a.C.: a democracia. A cada mês, os cidadãos com mais de 30 anos se
reuniam em uma grande Assembleia para debater leis e escolher magistrados. Cada
um tinha o direito de defender suas ideias em discursos públicos. Por isso, a
arte de falar bem – para convencer, para dissuadir ou mesmo para engambelar –
se tornou uma das ocupações favoritas entre os atenienses de todas as classes.
A arte do
diálogo
É nesse contexto que surgem os
sofistas – trupe de intelectuais itinerantes que, em troca de remunerações
graúdas, ensinavam as manhas da retórica aos jovens atenienses com ambições
políticas. Até então, a filosofia grega se ocupava principalmente de assuntos
cosmológicos, como a natureza dos astros e a origem do universo. Os sofistas
mudaram essa equação: para eles, o objeto da reflexão filosófica era o próprio
homem. Foi um sofista chamado Protágoras quem cunhou uma das frases hoje
utilizadas para descrever o espírito daquela época: “O homem é a medida de
todas as coisas”. Outra grande inovação introduzida por eles foi o uso do
diálogo como método de reflexão e persuasão. Até então, pensadores e políticos
costumavam deslindar suas ideias em longos monólogos, emitidos do alto de
tribunas, para audiências que podiam interferir apenas com aplausos ou apupos.
Já os sofistas preferiam exibir suas habilidades lógicas e seus floreios
argumentativos em debates cara a cara, em que dois ou mais interlocutores se digladiavam
na defesa de ideias opostas. Esse método dinâmico e vivaz fez grande sucesso em
meio à juventude ateniense, que acorria em pencas para assistir aos animados
duelos de eloquência protagonizados por Protágoras e sua turma.
Em meio
às entusiasmadas audiências dos diálogos sofistas, havia um sujeito pobretão,
excêntrico e dono de uma feiura proverbial. Antes de ganhar celebridade como
filósofo, Sócrates já era famoso como o maior esquisitão de Atenas. Filho de um
escultor e de uma parteira, ele se dedicou por alguns anos ao ofício do pai.
Mas, ao que tudo indica, o patrono da filosofia ocidental não era, digamos, um
sujeito muito trabalhador. Sua principal ocupação era sondar a alma humana, e
pouco tempo lhe restava para questões rotineiras, como ganhar a vida. Costumava
andar pelas ruas de Atenas metido em roupas puídas, com as grandes barbas
descabeladas e sempre perdido em reflexões. Às vezes, tinha acessos de
abstração que pareciam loucura: em determinada ocasião, passou mais de 24 horas
parado ao relento, entregue a alguma complexa ponderação metafísica. Também
afirmava ouvir uma voz misteriosa que lhe ditava regras de conduta – entre
outras coisas, esse estranho anjo da guarda teria proibido Sócrates de se
envolver em política (para o filósofo, nenhum homem justo pode enveredar por
esse escuro pantanal da atividade humana sem perder a alma ou a vida).
Sócrates
aprendeu a filosofar assistindo às preleções dos sofistas, mas logo acabou se
afastando dos antigos mestres. Com o tempo, o desgrenhado pensador compreendeu
que o excesso de truques retóricos de seus concidadãos servia muitas vezes para
ornamentar mentes vazias (qualquer semelhança com o universo acadêmico de hoje
não é mera coincidência). Cheia de intelectuais falastrões e de políticos
oportunistas, Atenas havia se tornado uma cidade excessivamente satisfeita
consigo mesma – e Sócrates decidiu que caberia a ele fustigar a soberba de seus
contemporâneos. Mas, para abraçar plenamente sua vocação à insolência, ele
precisou de um empurrãozinho divino.
Quando
confrontados pelos aspectos mais obscuros ou espinhosos da existência, os
antigos gregos costumavam consultar os deuses (naquela época, não havia
psicanalistas). Para isso, existiam os oráculos – locais sagrados onde os seres
imortais se manifestavam, devidamente encarnados em suas sacerdotisas. Certa
vez, talvez por brincadeira, um ateniense perguntou ao conceituado oráculo de
Delfos se haveria na Grécia alguém mais sábio que o esquisitão Sócrates. A
resposta foi sumária: “Não”.
Saber e
não saber
O inesperado elogio divino chegou
aos ouvidos de Sócrates, causando-lhe uma profunda sensação de estranheza.
Afinal de contas, ele jamais havia se considerado um grande sábio. Pelo
contrário: considerava-se tão ignorante quanto o resto da humanidade. Após muito
meditar sobre as palavras do oráculo, Sócrates chegou à conclusão de que
mudaria sua vida (e a história do pensamento). Se ele era o homem mais sábio da
Grécia, então o verdadeiro sábio é aquele que tem consciência da própria
ignorância. Para colocar à prova sua descoberta, ele foi ter com um dos
figurões intelectuais da época. Após algumas horas de conversa, percebeu que a
autoproclamada sabedoria do sujeito era uma casca vazia. E concluiu: “Mais
sábio que esse homem eu sou. É provável que nenhum de nós saiba nada de bom,
mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco
suponho saber. Parece que sou um tantinho mais sábio que ele exatamente por não
supor saber o que não sei”. A partir daí, Sócrates começou uma cruzada pessoal
contra a falsa sabedoria humana – e não havia melhor palco para essa empreitada
que a vaidosíssima Atenas. Em suas próprias palavras, ele se tornou um
“vagabundo loquaz” – uma usina ambulante de insolência iluminadora, movida pelo
célebre bordão que Sócrates legou à posteridade: “Só sei que nada sei”.
Para sua
tarefa audaz, Sócrates empregou o método aprendido com os professores sofistas.
Mas havia grandes diferenças entre a dialética de Sócrates e a de seus antigos
mestres. Em primeiro lugar, Sócrates não cobrava dinheiro por suas “lições” –
aceitava conversar com qualquer pessoa, desde escravos até políticos poderosos,
sem ganhar um tostão. Além disso, os diálogos de Sócrates não serviam para
defender essa ou aquela posição ideológica, mas para questionar a tudo e a
todos sem distinção. Ele geralmente começava seus debates com perguntas diretas
sobre temas elementares: “O que é o Amor?” “O que é a Virtude?” “O que é a
Mentira?” Em seguida, destrinchava as respostas que lhe eram dadas,
questionando o significado de cada palavra. E continuava fazendo perguntas em
cima de perguntas, até levar os exaustos interlocutores a conclusões opostas às
que haviam dado inicialmente – e tudo isso num tom perfeitamente amigável.
Assim, o pensador demonstrava uma verdade que até hoje continua universal: na
maior parte do tempo, a grande maioria das pessoas (especialmente as que se
consideram mais sabichonas) não sabe do que está falando.
Para
muitos ouvintes, o efeito do diálogo socrático era a catarse – uma experiência
de purificação espiritual em que as portas do autoconhecimento se escancaram.
Deixando
de lado a casca das ideias preconcebidas e os clichês, o discípulo estava
pronto para a perigosa aventura de pensar por si mesmo. Às vezes, os argumentos
desse conversador incansável eram tão azucrinantes que alguns ouvintes o
atacavam no meio da rua, com chutes e pontapés. Perante tais indignidades, ele
se limitava a responder com invulnerável ironia: “Não se costuma revidar contra
os jumentos que nos escoiceiam”.
Tamanha independência
de espírito pode ser algo bem arriscado – tanto na Antiguidade quanto hoje em
dia. As patotas políticas não sabiam como lidar com aquele homem que
questionava e irritava a todos com o mesmo sorriso de implacável gentileza, sem
se deixar aliciar por ninguém. Em 399 a.C., seus desafetos conseguiram levá-lo
a julgamento. O filósofo foi acusado de desrespeitar os deuses oficiais da
cidade e de “corromper a juventude”: na prática, o que estava sob ataque era
sua mania de fustigar a tudo e a todos sem pruridos. Ameaçado com a pena de
morte, ele retrucou: “Ninguém sabe o que é a morte. Talvez seja, para o homem,
o maior dos bens. Mas todos fogem dela como se fosse o maior dos males. Haverá
ignorância maior do que essa – a de pensar saber-se o que não se sabe?” Com sua
recusa a retratar-se perante a assembleia, o filósofo foi condenado a morrer
por envenenamento. No dia de sua execução, reuniu- se com os amigos, trocou
pilhérias e, naturalmente, entregou-se a discussões filosóficas. O carcereiro,
ao lhe trazer a taça com cicuta, estava chorando. Mas Sócrates tinha os olhos
secos. Bebeu o veneno como quem toma um remédio, despediu-se dos amigos com
cavalheiresca tranquilidade e se esticou no catre, como se fosse dormir. E só
então seu gênio insolente se calou.
O
“vagabundo loquaz” de Atenas foi a primeira figura célebre na história do
pensamento a morrer por suas ideias – e sua execução é um dos mitos fundadores
da filosofia ocidental. A relevância de Sócrates, contudo, transcende o
universo dos filósofos especializados ele se tornou, em grande medida, um
modelo de conduta humana. Sua modéstia, numa época de vaidade intelectual, é um
aviso aos navegantes de todos os séculos: por mais poder e desenvolvimento que
uma civilização tenha atingido, o fato é que, no fundo, continuamos todos
humanamente estúpidos. E a negação de nossa própria estupidez pode nos
transformar em monstros. Escapar à ignorância congênita da espécie é possível,
sim – mas essa é uma tarefa que não se realiza sozinho. A verdade (se é que ela
existe) só pode surgir pelo confronto direto e implacável (mas sempre amigável)
entre duas ou mais criaturas racionais. Pensar por si mesmo e a si mesmo,
olhando no espelho do outro: eis a lição aparentemente simples, mas hoje tão
esquecida, legada por uma das figuras mais intrigantes na história da
humanidade.
Sócrates
Um dos fundadores da filosofia ocidental, o pensador morreu em
399 a.C. Como Buda e Cristo, que não deixaram escritos, Sócrates é conhecido
hoje pelos textos de seus discípulos
A
trajetória de Sócrates é uma cruzada contra a falsa sabedoria. Sempre amigável,
o filósofo demonstrava o quanto ainda sabemos tão pouco dos mistérios da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário